Mais ou menos em
2001, quando A Sombra do Vento foi lançado, virou hype. Era destaque em todas
as livrarias, todo mundo só falava desse livro. Eu acabei comprando e confesso
que não curti. Não sei explicar, mas a história não me cativou. Os anos passaram
e acabei redescobrindo Carlos Luiz Zafón em outros livros, numa outra pegada. E
gostei tanto das histórias e de sua escrita, que eu simplesmente devorei todos.
Sim, minha gente, eu li todos os livros desse escritor.
E quando o
último terminou, eu me perguntei: como pode uma pessoa amar todos os livros do
Zafón e não ter gostado do mais famoso deles? Então, resolvi dar uma segunda
chance e comprei um novo exemplar num sebo – sim, porque eu detestei tanto
minha primeira leitura que nem guardava mais o livro comigo. E descobri também
que A Sombra do Vento é o primeiro volume de uma série de quatro livros
intitulada O Cemitério dos Livros Esquecidos. Pois bem, com a leitura da quadrilogia
completa, nesse post farei um resenhão!
- A Sombra do
Vento: antes de mais nada, vou começar dizendo que não só essa segunda chance que eu dei ao livro me proporcionou momentos muito interessantes e prazerosos, como eu ouso colocá-lo na lista de livros favoritos da vida! É engraçado como nossa percepção de leitura muda de acordo com a idade e o momento em que estamos vivendo.
Pois bem. Nosso narrador é Daniel Sempere, filho curioso de um dono de livraria que, como todo adolescente, interessa-se demasiadamente por tudo, apaixona-se loucamente por todos e tem um péssimo julgamento sobre o mundo que o cerca. E no cenário do pós Guerra Civil Espanhola, Daniel descobre um livro denominado A Sombra do Vento, último exemplar de qualquer coisa já publicada do autor Julian Carax. O livro é incrível, mas ele tem um preço. Existe um interesse muito grande em destruir qualquer coisa já escrita por Julian Carax e esses abutres logo saberão do exemplar em posse do narrador.
Claro que Daniel, curioso como é, vai querer descobrir a origem de tal alvoroço sobre o autor, situação que o levará a uma rede imensa de intrigas, protagonizada por cinco amigos que estudaram juntos no colégio e cujas vidas estão interligadas por uma espécie de madição, que afetará a todos. E claro que Daniel acabará passando bons bocados em sua investigação.
Além de ser um suspense incrível, os personagens são muito bons - destaque para o maravilhoso Fermín Romero de Torres, amigo doido e excêntrico do narrador, que tem as melhores tiradas do livro, que é quase uma poesia. Abaixo, alguns trechos extraídos:
"- Esse lugar é um mistério, Daniel, um santuário. Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de que o escreveu e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que que alguém passa os olhos por suas páginas, seu espírito cresce e a pessoa se fortalece. (...) Quando uma biblioteca desaparece, quando uma livraria fecha suas portas, quando um livro se perde no esquecimento, nós, guardiões, os que conhecemos esse lugar, garantimos que ele venha pra cá. Nesse lugar, os livros dos quais já ninguém se lembra, os livros que se perderam no tempo, viverão para sempre, esperando chegar algum dia às mãos de um novo leitor, de um novo espírito. Na loja, nós os vendemos e compramos, mas na verdade, os livros não têm dono. Cada livro que você vê aqui, foi o melhor amigo de um homem."
"Certa ocasião ouvi um cliente habvitual da livraria do meu pai comentar que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho ao seu coração. As primeiras imagens, o eco dessas palavras que pensamos ter deixado para traz, nos acompanham por toda a vida e esculpem um palácio em nossa memória ao qual mais cedo ou mais tarde - não importa os livros que leiamos, os mundos que descubramos, o quanto aprendamos ou nos esqueçamos - iremos retornar."
"- O serviço militar só serve para descobrir a porcentagem de homens violentos na população - opinava ele. - E isso se descobre nas duas primeiras semanas, não precisa de dois anos. Exército, casamento, igreja, banco: os quatro cavaleitos do Apocalipse."
"- Malvadas não - observou Fermín. - Imbecis, o que não é a mesma coisa. O mal pressupõe uma determinação moral, intenção e certa inteligência. O imbecil ou selvagem não para para pensar ou raciocinar. Age por instinto, como besta de estábulo, convencido de que está fazendo o bem, de que sempre tem razão e orgulhoso de sair fodendo, desculpe, tudo aquilo que lhe parece diferente dele próprio, seja em relação à cor, credo, idioma, nacionalidade ou, como no caso de dom Federico, pelos hábitos que tem nos momentos de ócio. O que falta no mundo é mais gente ruim de verdade e menos espertalhões limítrofes."
"- É como a maré, sabe? dizia, fora de si. Estou falando da barbárie. Ela vai embora e a gente pensa que está a salvo, mas ela volta sempre, sempre... e nos afoga. Eu vejo isso todo dia no instituto. Deus do céu! Macacos, é isso que chega às aulas. Eu lhe garanto que Darwin era um sonhador. Nada de evolução nem de criança morta. Para cada um que raciocina, tenho que lidar com nove orangotangos."
“(...) o primeiro volume se centraria na história de um leitor, neste
caso meu pai, e de como em seus anos de juventude ele descobrira o mundo dos
livros e por extensão a vida, por intermédio de um romance enigmático escrito
por um autor desconhecido que escondia um mistério sem fim, desses de babar. Tudo
isso daria ensejo para construir, em uma canetada, um romance que combinasse
todos os gêneros que existiam e que não existiam.”
- O Jogo do Anjo: É importante dizer que, ainda que os
quatro livros se complementem, tenham o mesmo cenário como pano de fundo e
compartilhem até mesmo alguns personagens, eles podem ser lidos
independentemente, porque são uma história completa com começo, meio e fim. Portanto,
O Jogo do Anjo não tem nada a ver com a histórica da Sombra do Vento, ele é
mais sombrio, mais pesado e, na minha opinião, mais ao estilo dos pocket books
do mesmo autor.
Pois bem. Daniel Martín é um rapaz que
passou mais reveses até chegar à idade adulta do que muita gente com o triplo
de sua idade. Mas acabou acolhido por um escritor, Pedro Vidal, e acabou
revelando-se um excelente romancista policial. E é dessa forma que ele começa
sua vida, que ele faz carrera.
Todavia, em determinado momento, e
ainda jovem, descobre que tem um tumor no cérebro e pouco tempo de vida. E no
mesmo momento, e talvez por conta de seu estilo, ele é procurado por um fulano
chamado Andreas Corelli, identificando-se como editor, que lhe faz uma proposta
singular: 100 mil francos em troca de um livro que apresente uma nova
religião. E no momento em que o protagonista aceita o desafio inusitado,
imediatamente sua sentença de morte se extingue e o tumor parece ter
desaparecido.
E Daniel vai dando andamento à sua
estranha tarefa e tendo encontros esporádicos com seu sinistro editor – que ninguém
parece conhecer ou ter ouvido falar e que faz reuniões nos locais mais macabros
e em horários mais inusitados. Mas, a real é que outras coisas muito estranhas
começam a acontecer em sua vida, como perseguições, mortes... e quando menos
espera, o protagonista se vê dentro de uma intriga perigosíssima que,
aparentemente, tem tudo a ver com seu novo patrão.
O problema é que, sendo ele o diabo, ou
não, a verdade é que Daniel vendeu sua alma àquele senhor quando assinou um
contrato e agora, não consegue se desvencilhar dessa trama em que é o
protagonista e poderia ter sido escrita pelo nosso herói.
O Jogo do Anjo não tem tantos personagens
maravilhosos como A Sombra do Vento, mas podemos contar com a livraria Sempere
e Filhos (e uma surpresa maravilhosa ao final), Isabella, a pessoa mais
cativante e maravilhosa do mundo, e diálogos impecáveis que somente Zafón
poderia fornecer. E tal como o primeiro livro da série, você não vai conseguir
parar de ler!
"- Pensa que é dinheiro sujo?
- Todo dinheiro é sujo. Se fosse
limpo, ninguém ia querer.”
“- Sobreviver faz parte da nossa natureza.
A fé é uma resposta instintiva a certos aspectos da existência que não podemos
explicar de outra forma, seja isso o vazio moral que percebemos no universo, a
certeza da morte, o mistério da origem das coisas ou o sentido da própria vida,
ou ainda, a completa ausência dele. São aspectos elementares e de
extraordinária simplicidade, mas nossas próprias limitações nos impedem de
responder de modo compreensível a tais perguntas e por isso criamos, como
defesa, uma resposta emocional. É pura e simples biologia.”
“-(...) Nesse caso, o problema reside
no fato de que o homem é um animal moral num universo amoral, condenado a uma
existência finita e sem nenhum outro significado além de perpetuar o ciclo
natural da espécie. É impossível sobreviver num estado prolongado de realidade,
pelo menos para um ser humano. Passamos boa parte de nossas vidas sonhando,
sobretudo quando estamos acordados.”
“-Sou um profissional. E posso dizer
o mesmo a seu respeito. Aquilo em que acreditamos, ou não, é irrelevante para a
realização do nosso trabalho. Acreditar ou não é um ato de covardia. Sabe-se ou
não se sabe, ponto final.”
“- Chegaremos aos adultos, apelando
para sua frustração. À medida que a vida avança e eles são obrigados a
renunciar aos sonhos e desejos da juventude, cresce a sensação de que são
vítimas do mundo e dos outros. Sempre encontraremos alguém que é culpado por
nossos infortúnios ou fracassos, alguém a que queremos excluir. Abraçar uma
doutrina que concretize esse rancor e vitimismo reconforta e dá forças. Assim,
o adulto se sente parte do grupo e sublima por meio da comunidade os seus
desejos e anseios perdidos.”
“-Toda religião organizada, com raras
exceções, tem como pilar básico a sujeição, a repressão e a anulação da mulher
no grupo. A mulher deve aceitar o papel de presença etérea, passiva e maternal,
nunca de autoridade ou independência, ou terá de pagar as consequências. Pode ter
seu lugar de honra entre os símbolos, mas não na hierarquia. A religião e a guerra
são negócios masculinos. E, em todo caso, a mulher acaba sempre por se converter
em cúmplice e executora de sua própria sujeição.”
“O segundo volume, embebido num travo
mórbido e sinistro que pretendia fazer cócegas nos leitores de bons costumes,
relataria as macabras peripécias vitais de um romancista maldito, cortesia de
David Martin, que plasmaria em primeira pessoa como perdia a razão e nos arrastaria
na descida aos infernos da sua loucura até se tornar um narrador menos confiável
que o príncipe dos infernos, que aliás também passaria por suas páginas. Ou talvez
não, porque tudo era um jogo no qual o leitor quem teria que completar o
quebra-cabeça e decidir que livro estava lendo.”
- O Prisioneiro do
Céu
O
Prisioneiro do Céu é o livro mais curtinho da coleção e uma espécie de costura
entre os dois primeiros. Digamos que ele foi criado com vistas a apresentar ao
leitor um fio condutor entre os personagens de O Jogo do Anjo e A Sombra e o
Vento e explicar algumas coisas. E, para a minha felicidade, ele nos contará
quem é Fermín Romero de Torres, meu personagem favorito!
Daqui
para frente, eu acho que vai ficar um pouco difícil continuar sem alguns spoillers. Pois bem, em determinado
momento de sua vida, durante a Guerra Civil Espanhola e o governo de Franco,
Fermín foi preso numa das penitenciárias mais famosas de Barcelona e do tipo
que impossibilita qualquer tipo de fuga. Por lá, conheceu alguns personagens
bastante peculiares, alguns dos quais criminosos incríveis e outros,
perseguidos políticos. Dentre eles, Daniel Martín, o protagonista dO Jogo do
Anjo.
Martín
e Fermín, dois gênios maravilhosos, se conhecem e as histórias de vida são
compartilhadas. Uma amizade surge dessa companhia e Daniel Martín se compromete
a ajudar Fermín a fugir daquele lugar, mas com a promessa de que velará por
Isabella e seu filho Daniel Sempere.
De
uma forma absolutamente inusitada, a empreitada tem sucesso e Fermín consegue sair
de um dos cárceres mais terríveis da época. E, cumprindo sua promessa, vai
procurar os Sempere. Aqui, o leitor tem duas descobertas: 1. O encontro com
Daniel Sempere ocorrido no primeiro livro não foi um acaso, 2. Isabella está
morta e a causa não foi cólera como se imaginava, mas assassinato.
Daí
que o restante do livro vai variando entre as amenidades do casamento de Fermín
com sua amada Bernarda e a sede de Daniel em vingar o assassinato de sua mãe. Aliás,
enquanto escrevo essa resenha, ainda não iniciei a leitura do próximo e último livro,
mas desconfio que ele irá tratar dessa situação, que é, na verdade, a última
ponta a ser abordada nessa quadrilogia deliciosa.
"-
Prefiro quando você expressa uma visão mais humanista e positiva das coisas,
Fermín. Como no outro dia, quando disse que, no fundo, ninguém é mau, apenas tem
medo.”
“-
Às vezes, a pessoa se cansa de fugir – disse Fermín – O mundo é muito pequeno
quando não se tem aonde ir.”
“O terceiro volume, caso o leitor tivesse
sobrevivido aos dois primeiros sem optar em subir em outro bonde rumo aos
finais felizes, nos resgataria momentaneamente do inferno e nos ofereceria a
história de um personagem, o personagem por excelência e voz da consciência oficial
da história, ou seja, meu tio adotivo Fermín Romero de Torres. Seu relato nos
mostraria em tom picaresco como ele havia se tornado quem era, e suas muitas
desventuras nos anos mais pesados do século revelariam as linhas que
interligavam todas as partes do labirinto.”
- O Labirinto dos
Espíritos
Como
eu imaginava, esse é o livro que resolve todas as arestas deixadas pelos
anteriores. Aliás, parabenizo Zafón, porque ele não só vai afundo em todas as
questões, como além!
Bem,
neste último volume, conhecemos Alicia Gris, uma mocinha que, na época da
Guerra, já órfã de pai e mãe, foi salva por ninguém menos que Fermín Romero de
Torres com quem acabou perdendo o contato. Alicia acaba se jogando no crime e,
após, sendo aliciada (trocadilho do nome?) por Leandro, um grande nome do
submundo político-policial. A atuação da dupla e de outros envolvidos, é sempre
por baixo do pano, no auxílio à polícia oficial para a resolução de casos mais
escabrosos.
Pois
bem. Em determinado momento, o Ministro Mauricio Valls – a.k.a antigo
carcereiro de Fermín, David Martin e tantos outros na prisão de Montjuic
trazida pelo terceiro livro e assassino de Isabella Sempere - desaparece
misteriosamente. O policial Vargas é acionado para trabalhar no caso e, como
companheira, é escalada Alicia Gris. O que ninguém esperava é que Valls é uma
peça chave de um esquema enorme promovido pelos poderosos barceloneses de
desaparecimento de crianças, mortes misteriosas e tantas outras peripécias
proporcionadas pelo governo espanhol na época de Franco.
Mas
a real é que essa questão não deveria ter vindo à tona. A falha dos poderosos
foi ter colocado duas pessoas honestas e comprometidas como Alicia e Vargas no
caso, situação que rompeu toda a operação proporcionada pelos superiores -
também implicados no caso – e na solução de um esquema monstro há muito
enterrado.
O
livro é bem interessante, porque é super político, cheio de intrigas, suspenses
e muita ação. Ainda, traz novos personagens muito maravilhosos e os velhos já
conhecidos: a família Sempere, o maravilhoso Fermín e o retorno de Carax. E
claro, como mencionado na introdução, vai solucionar uma série de mistérios que
ficaram, de certa forma, pendentes de solução nos volumes anteriores.
Zafón
é um gênio!!
“-
Plano de ação é aquilo que você inventa quando não sabe aonde vai e assim
convence a si mesmo e a algum outro bobo de que está se dirigindo a algum
lugar.”
“Leandro,
fino observador dessas coisas, costumava dizer que, depois de solucionar a
alimentação e a moradia, a primeira necessidade do ser humano é a busca de
motivos e recursos para sentir-se diferente e superior aos seus semelhantes.”
“Nesse
teatro cheio de santinhos do pau oco que é o mundo, a falsidade é a argamassa
que mantém unidas todas as peças do presépio. Os homens, seja por medo, por
interesse ou ingenuidade, se acostumam tanto a mentir e a repetir as mentiras
dos outros que acabam mentindo até quando acham que estão dizendo a verdade. É
o mal do nosso tempo. A pessoa sincera e honesta é uma espécie em vias de
extinção, tal como o plessiossauro e a cantora de cabaré, se é que existiu
alguma vez e não é como o unicórnio.”
“A quarta parte, virulentamente forte e
condimentada e com os perfumes de todas as anteriores, nos levaria finalmente
ao centro do mistério e nos revelaria todos os enigmas por intermédio do meu
anjo das trevas favorito, Alicia Gris. A saga conteria vilões e heróis, e mil
túneis através dos quais o leitor poderia explorar uma trama caleidoscópica semelhante
à miragem de perspectivas que eu tinha descoberto com meu pai, no coração do
cemitério dos Livros Esquecidos.”
Uma menção honrosa a Zafón que, infelizmente, faleceu no último dia 19/06/2020 e, portanto, nos deixará órfãos de outros livros maravilhosos.